Foto: Alan Santos/PR - Fotos públicas |
Neste país que se encontra entre os mais desiguais do mundo,
os herdeiros sociais dos escravos, os negros e os brancos pobres que vivem nas
favelas do Rio de Janeiro são os primeiros a assistir, presos entre a angústia
e o pavor, a troca dos atores que secularmente se revezam em suas vidas e em
sua história: saem Executivo, Legislativo e Judiciário. Entram infantaria,
cavalaria e artilharia...
O Executivo, o Legislativo e o Judiciário do Rio de Janeiro
foram instados, pelo Decreto de Intervenção Militar assinado por Temer, em 16
de fevereiro, a se afastar da cena para dar lugar ao que pode ser um Ensaio
Geral, num país em que as Forças Armadas funcionarão, mais uma vez, como um
gatilho voltado contra a cabeça dos pobres sempre que a plutocracia julgar seus
interesses em perigo. O decreto de Temer introduz um novo componente na crise
que nos governa: converte as FFAA em forças de ocupação.
A população trabalhadora que desce do morro para ganhar seu
sustento na Zona Sul e regressa para casa no fim da tarde, está sendo colhida
entre duas forças: as forças informais do tráfico, com quem convive, que lhe
assegura certo grau de proteção, algum ganho e assistência social nos momentos
de maior necessidade e as Forças Armadas de um Estado invisível que não a
reconhece como portadora de direitos à educação, saúde e outros serviços
essenciais. Não há motivos para duvidar que as favelas do Rio são apenas o
primeiro alvo. Abriu-se com elas novas possibilidades e, (a conferir) novos
alvos.
Os golpistas têm problemas para sustentar a ousadia da
iniciativa, pese a arrogância e o cinismo do Chefe da Casa Civil, Moreira
Franco, em entrevista a um jornal paulista, “aqui não tem amador...”, a soma de
trapalhadas logo no início da Intervenção Militar indicam Michel Temer como um
repentista de baixa qualidade, que imagina governar o Brasil por meio de
prestidigitações mal enjambradas.
Ninguém ignora a gravidade da violência no Rio, consolidada há
décadas. Não faltam também estudos e análises do quadro de evolução desta
violência quando comparada com outras regiões do país. Em nenhuma delas, as
cidades do Estado do Rio aparecem entre as 30 mais violentas do país; não
faltam, tampouco, denúncias do atropelo dos ritos e normas que enquadram uma
medida extrema como a intervenção militar; ou relatos da constrangedora reunião
entre o assim chamado Conselho da República e os comandantes das Forças
Armadas; ou ainda, do início das operações antes mesmo de ser votada a medida
nas duas Casas do Congresso como seria de esperar num país que respeitasse
minimamente sua própria Constituição. Os mais vividos conhecemos a expressão:
“às favas com os escrúpulos...” E com as normas... Afinal, vivemos tempos excepcionais.
E tempos excepcionais exigem medidas excepcionais, nos ensina o juiz de
Curitiba...
Confirma-se, com o lance da Intervenção Militar no Rio, a
lógica da delinquência. A quadrilha que assaltou o Palácio do Planalto com o
golpe de 2016 aposta, com prestimoso apoio da Rede Globo de Televisão, na
máxima: quem nos governa é a crise. Outras empresas do mercado de notícias têm
buscado manter alguma distância face a essa operação que traz consigo todos os
ingredientes da “fuga para frente”, para oferecer a aparência do “normal
funcionamento das instituições”, como repetem os chefes do crime organizado que
assumiram o comando da república há dois anos.
Desejam, à força, habituar o país à barbárie, ao descalabro,
ao descrédito, à falência das instituições democráticas e preparar o terreno
para que a própria sociedade suplique em breve tempo – assim esperam... – por
soluções autoritárias e aceite o adiamento das eleições presidenciais ou clame
por sua simples supressão. Dessa forma se realizaria o objetivo dos que
atropelaram a soberania popular com a deposição da Presidente legítima, Dilma
Rousseff, a partir do golpe de estado de 2016: estabelecer no país uma
democracia sem povo.
Ao condenar sem provas o ex-Presidente Lula no TRF 4, o
Judiciário brasileiro realiza objetivamente o sequestro de sua candidatura no
pleito de outubro próximo. Se não é fraude eliminar o concorrente melhor
posicionado na disputa, trata-se fatalmente de uma trapaça. Ironia da história,
Lula foi condenado por possuir um apartamento tríplex fruto de favores, embora
não tenham conseguido uma única prova material que sustente essa acusação. Já
os inimigos que o submeteram a um julgamento infame e o condenaram, estão entre
os que foram flagrados nos últimos dias pelo escândalo do “Auxílio Moradia”
para os magistrados federais... Alguns vieram a público tentar defender o
indefensável. O vexame expõe à sociedade brasileira e ao mundo a condição
humilhante de sermos um país de castas, assentado sobre privilégios
inaceitáveis em qualquer nação democrática contemporânea.
O colapso da Constituição de 1988 e os múltiplos conflitos,
econômicos, sociais, políticos e culturais que conduzem o país a uma situação
de transe adquire novo contorno. Mais radicalizado. Já não se trata apenas do
tradicional conflito distributivo, da disputa da riqueza produzida pelo país ou
da destinação do orçamento público. Soma-se a eles uma exigência de natureza social,
relacionada a novos direitos, ao exercício da cidadania nas condições
contemporâneas.
Esse novo quadro reclama das esquerdas um acurado exame das
contradições geradas pela inclusão de um importante contingente de novos
consumidores no mercado ao longo da primeira década do século XXI, que
passaram, no momento seguinte, a exigir com sua simples presença, garantias
para sua nova condição de cidadãos. Os novos incluídos no consumo de massa
exigiram a inclusão nos direitos sociais, ainda que não a explicitassem por
meio de um discurso político consciente.
O golpe foi dado para que essa aspiração dos que emergiram
das condições miseráveis ou da extrema pobreza não se consumasse. Parafraseando
Lula: o direito a três refeições diárias se transformou na exigência de
frequentar melhores escolas, melhores hospitais, transporte de qualidade,
viajar, visitar espaços antes exclusivos das classes médias destinados à
cultura e ao lazer... Em suma, criaram com sua presença nos espaços de consumo
um enorme mal estar para esses setores educados secularmente a desprezá-los.
Vencida a batalha da Previdência, momentaneamente retirada
da pauta, o desafio para os setores que se opõem ao golpe, é manter a
mobilização dos setores organizados para enfrentar a agenda das demais reformas
pretendidas pelo governo golpista, garantir o cumprimento do calendário
eleitoral e a realização de eleições democráticas sem exclusões ou vetos, para
que o povo se pronuncie e eleja a liderança capaz de conduzir o país de volta
ao desenvolvimento com democracia, distribuição de renda, soberania e paz.
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